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MAIO VERDE


Trocando as lentes do sistema carcerário

Artigo.

Por Maxuel Pereira Dias
20 de de 2024 - 15:16
Bruno Cidade Trocando as lentes do sistema carcerário


O Núcleo da Defensoria Pública de Colniza tem aplicado círculos de construção de paz na Cadeia Pública da comarca. O círculo de construção de paz é uma das metodologias da Justiça Restaurativa, modelo que tem como propósito alterar o vetor da Justiça Criminal para focar nos danos provocados pelo crime, nas pessoas que os sofreram e nas medidas necessárias para amenizá-los. 

Um célebre jurista disse: desejar combater a criminalidade com a pena é como querer tratar inflamação com analgésico. A aplicação da pena é incapaz de curar a “inflamação” provocada pelo crime. No máximo, é capaz de passar uma falsa sensação social de amenização da dor. No entanto, cumprida a pena, a inflamação persiste e muito provavelmente provocará dores ainda mais intensas no futuro. 

O modelo tradicional de justiça criminal enfoca exageradamente no crime e no ofensor, sem se atentar a aspectos fundamentais, a exemplo da reparação do dano causado à vítima e das necessidades que se originaram desse evento traumático. Os danos continuam sem reparação, as feridas abertas e os traumas presentes. 

A Justiça Restaurativa passa a ver o crime não apenas como uma violação de uma norma estatal, mas como evento que produz danos a pessoas e a comunidades. O foco restaurativo estabelece a reparação como finalidade principal da atuação da justiça criminal. O enfoque são os danos e a finalidade é a restauração. 

A JR incentiva os ofensores a tomarem posição ativa diante dos danos causados. O primeiro passo é o reconhecimento dos danos que foram causados. Não se fala em “confessar o crime”, mas de reconhecer que, de um jeito ou de outro, alguém foi prejudicado. Em seguida, o ofensor toma medidas necessárias para a reparação daquele dano ou, pelo menos, para a amenização da dor causada. Nesse processo, o ofensor é empoderado, pois a atitude restauradora lhe devolve a autoestima e, com isso, pode avançar no processo de reintegração social. 

Nessa trilha, os círculos de construção de paz foram aplicados em Colniza-MT, para um grupo de 10 pessoas. Dos participantes, sete são pessoas em cumprimento de pena. Participam, ainda, duas pessoas do Núcleo da DPE Colniza (incluindo o Defensor Público) e um policial penal (geralmente o Diretor da Unidade). Entre os que cumprem pena, há pessoas com condenações por crimes diversos, a maioria por homicídio. 

Da aplicação dos círculos, notou-se que a criação de espaços para reflexão no ambiente prisional é de essencial necessidade para promover a emancipação da pessoa presa na construção da própria trajetória. Um dos círculos aplicados tratou sobre o tema “Escolhas e Consequências”, no qual os participantes foram convidados a examinar os aspectos que os trouxeram à situação atual. Durante a dinâmica, muitos revelaram um passado familiar conturbado, a ausência de contato com o pai e situações socioeconômicas dificílimas. Outros, entretanto, reconheceram que a inclinação ao crime decorreu de péssimas escolhas. 

Por outro lado, conforme relato dos participantes, a realização dos círculos tem resgatado a autoestima de muitos presos. Descreveram que a forma com que a dinâmica é conduzida (igualitariamente) e os assuntos que são tratados (relacionados à responsabilidade, esperança e reconstrução) constituem uma abordagem que permite a reflexão a respeito do crime de uma forma diferente da culpabilizante típica do modelo tradicional. 

A prisão desumaniza. Mas os círculos são uma forma de combater esse processo. A ausência de hierarquia a democraticidade da metodologia devolvem ao preso o sentimento de igualdade em consideração e respeito de que todos são dignos, mas que são reiteradamente privados durante a expiação. 

A Justiça Restaurativa em Colniza é um projeto piloto, ainda embrionário. Fruto de um sonho de um jovem Defensor Público que não se conforma com a maneira ineficaz com que o sistema penal é conduzido. É um passo pequeno, mas que talvez constitua uma pequena fissura no muro que há entre a comunidade e os reclusos. Quem sabe, através dessa fissura, consigamos libertar da opressão da culpa, aqueles que desejam responsabilizar-se a atuar ativamente na restauração do que foi danificado.