Após ofício enviado pela Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso (DPEMT), o Cartório do 2º Ofício de Vila Bela da Santíssima Trindade (522 km de Cuiabá) emitiu, na última sexta-feira (5), a segunda via da certidão de casamento de Feliciana Maconho Paz Flores Chiquitana, 44 anos, incluindo a etnia indígena em seu nome.
A líder indígena foi atendida pelo defensor público Antônio Góes de Araújo e pela assessora jurídica Loyuá Costa durante a “Expedição Justiça Sem Fronteiras”, no dia 7 de julho, no distrito de Santa Clara do Monte Cristo, distante cerca de 40 km da comunidade indígena Santa Mônica, onde ela mora desde que nasceu.
Promovido pelo Poder Judiciário, de 1º a 9 de julho, o mutirão levou atendimento jurídico gratuito, serviços de saúde e cidadania para a população que vive na fronteira entre Brasil e Bolívia, na região sudoeste de Mato Grosso.
“A importância da inclusão da minha etnicidade, para mim, foi fazer valer meus direitos, me valorizar mais, ter mais respeito diante dessa sociedade que só nos exclui e não nos respeita por ser quem somos”, revelou a chefe indígena.
Feliciana afirmou que poucas famílias assumem a origem indígena na comunidade e que ela tem lutado contra o preconceito e a invisibilidade histórica para preservar a cultura dos seus antepassados.
“Tem mais de 80 famílias aqui na comunidade, mas apenas seis se reconhecem como indígenas. O restante não se declara por pressão, preconceito e medo”, revelou.

Para o defensor, incluir a etnia indígena nos documentos oficiais reforça a identidade cultural e o reconhecimento dos povos tradicionais, promovendo o orgulho e a valorização da sua cultura, além de garantir direitos e contribuir para uma sociedade mais justa e inclusiva.
“Fomos solicitados por ela para fazer a alteração do registro do assento de casamento para a inclusão da etnia no nome dela, algo que é uma demanda comum desse agrupamento indígena. Fizemos essa solicitação via ofício ao cartório e o pedido foi efetivamente acolhido. É importante trazer a identificação da etnia no nome porque eles se consideram dessa forma”, detalhou Araújo.
A averbação no documento da chefe indígena foi feita pelo cartório de registro civil do 2º ofício de Vila Bela da Santíssima Trindade, atendendo ao pedido da DPEMT, com base no artigo 515-R do Provimento 149 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e na Resolução Conjunta n.º 3, de 19 de abril de 2012, do CNJ e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Conforme o ato, atualizado pela Resolução Conjunta n.° 12, de dezembro de 2024, agora é possível que a pessoa indígena modifique seu nome extrajudicialmente. Fica permitido, inclusive, que seja incluído dentro de seu nome a etnia, o grupo, o clã e a família indígena a que essa pessoa pertence.



Saiba mais – “Chiquito” significa pequeno (diminutivo de “chico”), em espanhol, e designa vários povos localizados na zona de transição entre o Chaco Boreal, área de vegetação característica que engloba o noroeste do Paraguai, o sudeste da Bolívia, o norte da Argentina, bem como regiões da fronteira do Brasil com os países vizinhos, e a selva amazônica.
Os chiquitos, também conhecidos como povos do planalto, foram assim chamados devido à suposição de que se tratava de uma povoação de pessoas pequenas, por causa do tamanho reduzido das entradas das casas, característica que, na verdade, tinha a função de proteger os indígenas de eventos climáticos extremos.
“Eles faziam a casa deles pequena por causa dos cuidados com as tempestades. A casa não podia ser muito alta devido ao perigo das chuvas. Tudo era de estrutura pequena na moradia. A porta era baixa e não muito larga, era parte da cultura do povo”, explicou Feliciana.
De acordo com estudos acadêmicos, o povo chiquitano foi construído a partir de uma fusão de grupos indígenas na região da fronteira entre Brasil e Bolívia, envolvidos em conflitos políticos e diferenças culturais decorrentes de disputas territoriais.
Atualmente, apenas um território tradicional Chiquitano, em solo brasileiro, foi identificado e demarcado: a Terra Indígena (TI) Portal do Encantado, localizada nos municípios de Pontes e Lacerda, Porto Esperidião e Vila Bela da Santíssima Trindade, na fronteira com a Bolívia.
Apesar da demarcação ter sido publicada no Diário Oficial da União (DOU), em dezembro de 2010, o ato foi judicialmente suspenso no ano seguinte. Somente em 2022, uma decisão do juiz federal Rodrigo Bahia Accioly Lins determinou a demarcação da Terra Indígena.
“A negação da identidade indígena por parentes consanguíneos e afins encontra-se no preconceito, na pressão de toda ordem que ainda prevalece no contexto regional”, diz trecho da decisão.
Segundo estudos apresentados pelo Grupo de Trabalho Chiquitano, do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), a decisão reconheceu o histórico de apropriação indevida do território Chiquitano, a ocupação secular e tradicional desses indígenas na fronteira, e a alegação infundada de que não se trata de um povo originário.
“Meus avós, que já faleceram, me contaram que existem 12 províncias de chiquitos na Bolívia. O povo chiquitano é muito grande, é uma nação. Mas, por causa da opressão dos latifundiários, muitos não se reconhecem indígenas, principalmente no Brasil. Venho de um povo que reside há séculos nesse território da faixa de fronteira, lugares com florestas e biomas muito ricos, como o cerrado e o Pantanal”, sustentou Feliciana.


“Sei que mesmo assim ainda vou sofrer preconceito e discriminação por ser quem sou, indígena. Mas, sei também que vale a pena lutar pelos nossos direitos como cidadãos de bem, como creio que eu sou. É isso que importa”, destacou a pedagoga, orgulhosa por agora ter oficialmente a etnia Chiquitana em seu documento.
Promovida pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), a “Expedição Justiça Sem Fronteiras” contou com o apoio da DPEMT e outros órgãos públicos, buscando superar as barreiras geográficas, culturais e sociais que dificultam o acesso a direitos fundamentais em localidades como Agrovila Nova Esperança (Cáceres), Vila Picada (Porto Esperidião) e Santa Clara do Monte Cristo (Vila Bela da Santíssima Trindade).