Ela tem mestrado em antropologia, é bióloga e cursa sociologia numa universidade pública de Mato Grosso. Aos 35 anos, garante que o conhecimento e mesmo o fato de ter sido vítima de violência doméstica no primeiro relacionamento, não a blindaram ou evitaram que ela caísse num novo ciclo de humilhação, abusos, tentativas de suicídio e estafa. Dessa vez, o abusador era “insuspeito”, alguém que estendeu a mão a ela, num momento de fragilidade e se aproveitou disso. Porém, foi na Defensoria Pública de Mato Grosso, que ela afirma ter encontrado amparo real.
O caso de *Sofia é um dos 9,3 mil que o Núcleo de Defesa da Mulher de Cuiabá (Nudem) atendeu em 2024 e que felizmente, mesmo ela estando doente e abalada, é motivo de comemoração por estar viva para contar. Outras 42 mulheres de Mato Grosso não tiveram o mesmo destino e hoje aparecem nas estatísticas de mortes violentas do ano.
“Eu me casei com 16 anos, fiquei grávida com 18 e sofria violência física do meu marido o tempo todo. Ele bebia e eu achava que apanhar era algo normal. Minha mãe apanhava e como cresci numa casa violenta, eu achava que um casamento era assim. Eu tentava evitar, achava que apanhava por fazer algo errado. Mas, um dia percebi que eu não apanhava por fazer ou deixar de fazer coisas, mas, porque ele era violento. Depois de um grave espancamento pedi a separação”, conta.
Na época, 2007, Sofia lembra que o divórcio só era feito em comum acordo entre as partes, por isso, levou cinco anos para se desvincular do marido agressor. “A última surra que ele me deu foi na rua. Ele bateu minha cabeça no meio-fio, as pessoas viam e ninguém fez nada, ninguém me ajudou. Quando ele me deixou desacordada, um parente me socorreu e decidi que não passaria mais por aquilo. Eu conheci a violência física naquela época. Criei meu filho sozinha, me virei. Porém, eu ignorava o que era violência psicológica e manipulação mental”.
Violência psicológica - Em 2018, ela conta que queria fazer mestrado, acreditava que seguiria a carreira acadêmica e pediu auxílio e informações para um conhecido, que fazia parte do corpo acadêmico. A dinâmica da ajuda se mostrou estranha desde o começo, mas Sofia aceitou a situação e passou a conhecer a violência sutil, que afetou suas emoções e o seu psicológico.
“Desde a primeira vez que tive contato com ele, ele se aproveitou. Se aproveitou do cargo para marcar a primeira reunião no último horário, quando não tinha mais ninguém na sala, levantou a minha vida, identificou minhas fragilidades e a partir dali, tentou ser útil. Hoje, percebo o que foi aquilo. Manipulador, ele disse que ia me ajudar. Marcou novas conversas até o ponto de me oferecer um emprego e no dia que aceitei, ele me ofereceu carona e me levou para o motel”, lembra.
Sofia conta que a partir dali ela virou cumplice do agressor, que a seduziu, ofereceu emprego, porém cobrou que ela entregasse, todos os meses, parte do salário para que ele investisse no projeto pessoal dele, de ocupar o topo da carreira no trabalho.
“Fiquei confusa, precisava trabalhar, criar meu filho e aceitei tudo. Aceitei trabalhar e dar 40% do meu salário para ele trabalhar no projeto dele e fui cada vez mais me afundando naquilo e percebendo que eu não era a única. Ele fazia isso com outras mulheres e ele e os amigos falavam que nós, mulheres com esse perfil: mãe solteira, cheias de fragilidades, éramos as ‘cooptadas pelo órgão genital’. Quando percebi que eu não integrava os planos futuros dele, mas era um meio dele conseguir poder, quis sair daquilo”.
Rompimento - A bióloga conta que em 2020 disse que não daria mais parte do salário para o agressor, então, ele teria começado uma série de acusações e agressões verbais. “Ele disse que eu era traidora, que tinha me beneficiado, que ele tinha me dado emprego, que eu tinha saído do bairro periférico onde eu morava e agora, o estava traindo”.
No dia que deixou de dar parte do salário, Sofia achou que tinha encerrado um ciclo ruim, mas, passou a sofrer difamação no trabalho. “Ele foi me minando, me difamou, fez parte dos colegas romperem comigo, fez a nova diretoria do trabalho desconfiar de mim, fui isolada ali e assim, pararam de me dar ocupação. Eu era responsável por toda a parte financeira do lugar e de repente, tudo parou de passar por mim. E isso começou a me deixar com medo de perder o emprego, entrei em depressão, tive estafa mental, tentei duas vezes contra minha vida e fui afastada por motivo de saúde. Quando voltei, me demitiram e estou assim, entre idas e voltas”, conta.
Sofia afirma que não tinha com quem conversar, para quem falar e por medo de sofrer emboscadas, começou a fazer artes marciais. E que apenas dois anos depois do término, conseguiu procurar ajuda na Defensoria Pública. No órgão, ela foi orientada sobre como proceder, registrou boletim de ocorrência na Polícia contra o agressor por violência psicológica e patrimonial e hoje, recebe acompanhamento administrativo e jurídico da equipe do Nudem.