O ano era 2012 quando o Governo Federal sancionou a Lei nº 12.764, também conhecida como Lei Berenice Piana que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA). De lá pra cá, diversas legislações federais, estaduais e municipais foram instituídas em todo o território brasileiro com o objetivo de assegurar o direito das pessoas e das famílias atípicas. Todavia, não basta apenas produzir e sancionar essas leis, mas sim realizar uma grande jornada de conscientização da população brasileira.
Este é o posicionamento da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso (DPEMT) que busca conscientizar a sociedade quanto aos direitos dos TEAs e das famílias atípicas. Para a defensora pública e membra da Comissão Especializada da Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), Cleide Regina Nascimento, o conhecimento dos direitos é essencial para a garantir a inclusão plena e proteção de todos.
"É fundamental que a sociedade e, especialmente, os pais conheçam os direitos das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), pois esse conhecimento é essencial para garantir a inclusão plena e a proteção contra qualquer forma de discriminação. Quando pais estão bem informados, conseguem buscar o suporte necessário, cobrar políticas públicas eficazes e assegurar que seus filhos tenham acesso à educação, saúde e demais serviços essenciais com dignidade. Além disso, uma sociedade consciente promove o respeito, a empatia e valoriza a diversidade, construindo espaços mais acolhedores e acessíveis para todos”, diz a defensora.
Nesse contexto, iniciativas que ampliam a visibilidade sobre o autismo tornam-se ainda mais importantes. É por isso que o mês de abril é conhecido como o mês de conscientização sobre o autismo, tendo o dia 2 como o Dia Mundial de Conscientização do Autismo. A criação da data foi registrada em 2007 e aprovada durante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). O objetivo deste mês, que foi apelidado de “Abril Azul”, é conscientizar sobre os direitos das pessoas com TEA e também promover um olhar mais humano e respeitoso em relação à convivência com essas pessoas na sociedade.
Tal como explicitado pelo portal Autismo e Realidade, o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento, desta forma, ao contrário de pessoas que por exemplo são portadoras da síndrome de Down, o autista não possui características que podem ser identificadas pelo olhar. Por isso o autismo é considerado com uma deficiência invisível.
Autista sim, invisível jamais
Jean Viega tem 32 anos e em 2015 conquistou o sonho de ser aprovado no concurso público da DPEMT, no cargo de Técnico Administrativo com atuação no Núcleo de Primavera do Leste (234km de Cuiabá). Ele sempre exerceu sua função com muito empenho, mas notava que tinha algo de diferente em si desde a infância. Jean tinha uma certa dificuldade em socializar com outras crianças e adolescentes, porém isso não o impedia de estudar e trabalhar.
Aos 30 anos, ele decidiu procurar ajuda psicológica e psiquiátrica devido a uma suspeita de ser portador do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), porém, após muitas consultas com profissionais da área médica, foi diagnosticado com o Transtorno do Espectro Autista de nível 1.
“Primeiramente foi uma surpresa, mas nem tanto. Eu tinha uma investigação para TDAH, mas depois das consultas com psiquiatra e psicólogos eu recebi o diagnóstico de TEA. Quando foram me explicando como funciona o TEA tudo foi clareando para mim. Na época fizeram entrevistas com minha esposa e com a minha família e tudo foi se encaixando. Para mim foi revelador porque você vai conectando com as questões de infância e adolescência, quando tinha uma certa reclusão social e a sociabilidade era difícil para mim”, conta Jean.
Diagnóstico realizado, veio então uma outra luta: o de vencer o preconceito e os olhares das pessoas. Jean trabalhava há oito anos na DPEMT e tinha receio de como os colegas de serviço iriam recebê-lo, afinal, ele precisava de uma readaptação na função.
Um de seus maiores medos eram os comentários capacitistas da sociedade que, infelizmente, ainda insiste em dizer: “hoje em dia, tudo é TEA”, o que acaba gerando um desconforto para as pessoas que possuem o transtorno. Mas Jean foi acolhido pelos colegas de trabalho e hoje conseguiu ser readaptado em suas funções.
“Como eu passei bastante tempo no atendimento ao público, foi agravando um pouco a questão das ansiedades e isso pro TEA é bem complexo. É claro que eu fui me adaptando ao longo dos anos, mas foi chegando um momento que realmente ficou desgastante e isso foi atestado pelo neuropsicólogo e pelo psiquiatra. Agora, com o laudo pericial, eu estou readaptado, tenho as outras funções administrativas no núcleo, atuo junto ao meu coordenador, que me ajudou bastante e me delegou algumas atividades administrativas da coordenação. O meu coordenador foi bem parceiro”, conta.
Jean reconhece que por trabalhar na DPEMT ele teve o privilégio de ser acolhido pelos colegas servidores e pelos defensores públicos, além disso, por estar tão perto do Judiciário, ele teve acesso às legislações que tratam dos direitos dos TEAs. Porém, nem sempre é assim. “Na lei e nos decretos é bonito, mas as coisas ainda não estão bem esmiuçadas. Vejo muitas pessoas que vão até a Defensoria buscando seus direitos. Como eu já trabalhei no atendimento ao público, já acompanhei alguns casos, como por exemplo de bullying em escolas. Então eu entendo que deve haver uma maior educação da sociedade”.
O coordenador do Núcleo da Defensoria Pública de Primavera do Leste, Rafael Rodrigues Cardoso, garante que o ambiente acolhedor e inclusivo da DPEMT ajudou no processo de readaptação de Jean, uma pessoa pela qual ele tem total admiração.
“Quando o Jean nos comunicou sobre o diagnostico de TEA, primeiro foi uma surpresa, porque ele já tinha oito anos que trabalhava conosco e ninguém fazia ideia do que ele estava passando. Eu não consigo imaginar o tanto de dificuldade que ele havia enfrentado. Ao mesmo tempo eu admiro como ele foi persistente e nunca desistiu da carreira. Depois do diagnóstico, passamos por um processo de readaptação das funções que ele desempenhava. Hoje ele continua exercendo suas funções muito bem, ele é proativo e veste a camisa da Defensoria”, conta o defensor público.
A história de Jean mostra como o acesso à informação e o reconhecimento dos próprios direitos podem transformar realidades e fortalecer a inclusão. Para a defensora pública Cleide Regina, é essencial que a sociedade esteja atenta às violações de direitos e que esses casos sejam denunciados, para que órgãos como a Defensoria Pública possam agir de forma efetiva.
“É de cortar o coração a gente ver um autista descrevendo os horrores que ele vivenciou na escola, ele dizendo que a pior experiência da vida foi em sala. Eu realmente espero que não tenhamos esses traumas com todas as nossas crianças. Que possamos ser um espaço de acolhimento, cuidado e um espaço de desenvolvimento dessas pessoas. Denuncie se estiver diante de alguma violação de direitos. Nós só podemos melhorar o atendimento às pessoas com deficiência e o atendimento aos autistas se as pessoas conhecerem os direitos, identificar a violação e denunciar. Pode ser na Defensoria Pública, no Ministério Público, nos Conselhos Tutelares, nas Delegacias. Pode até mesmo denunciar de forma anônima, mas só com a denúncia podemos identificar e tomar providencias. Não espere uma criança morrer porque não foi feito o cuidado necessário”, afirma Cleide Regina.