Na manhã desta sexta-feira (23), ocorreu uma audiência pública sobre as inspeções realizadas em locais de privação de liberdade em Mato Grosso pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), com o apoio da Escola Superior, Defensoria Pública de Mato Grosso e Pastoral Carcerária, no auditório Defensora Rejane Iara Snidarsis, na sede da Defensoria Pública, em Cuiabá.
A mesa do evento foi composta pela defensora pública-geral de Mato Grosso, Luziane Castro, defensor Paulo Marquezini, coordenador do Grupo de Atuação Estratégica (Gaedic) Sistema Prisional, juiz Marcos Faleiros, representando o Tribunal de Justiça (TJMT), Diógenes Marcondes, representando a Secretaria de Estado de Saúde, Monalisa Toledo, representando a Secretaria de Estado de Segurança Pública, e as peritas do MNPCT, Camila Santana, Maria Cecília Arruda, e Viviane Ribeiro.
“Para a Defensoria Pública, é sem sombra de dúvidas um momento muito importante. A Defensoria vem atuando incansavelmente, cada vez mais, na defesa dos direitos humanos. Temos que estar lá, ver essas condições e principalmente lutar por melhorias. Estamos felizes com a presença da sociedade civil. Como sempre digo aqui, a Defensoria é a casa de vocês”, afirmou Luziane.
De acordo com o MNPCT, foram realizadas inspeções não anunciadas na Penitenciária Central do Estado (PCE), Centro Integrado de Assistência Psicossocial Adauto Botelho, Residências Terapêuticas Tucano e Sabiá, Centros de Atendimento Socioeducativo (Cases) Internação Provisória e Internação Feminina, e Masculina Provisória e Internação, e Centro de Ressocialização Industrial Ahmenon Lemos Dantas, de 19 a 23 de junho.
“Fazemos as inspeções para averiguar denúncias, violações de direitos humanos e, ao mesmo tempo, fazer recomendações para que unidades recebam melhorias”, afirmou Maria Cecília, explicando que a apresentação representa uma análise preliminar e que o relatório completo deve ser divulgado dentro de 30 dias no site do Mecanismo.
Dentre as irregularidades constatadas na PCE, estão: celas sem ventilação cruzada, esgoto correndo pelos corredores, exaustor e energia desligados, e atendimento médico praticamente inexistente.
“Não existe remição pela leitura, as pessoas estão tendo privação do banho de sol, e em alguns casos da visita familiar. A presença de ratos e baratas é constante, falta medicação, há doenças crônicas sem acompanhamento, necessidade de cirurgias, enfim, uma total desassistência na área da saúde”, relatou Viviane.
Segundo a perita, as celas são muito escuras e há muitas grades nos corredores, impedindo a evacuação em caso de incêndio.
“São cerca de 2.600 pessoas na PCE, há eixos com 400 pessoas. Existe também um mercado paralelo, com um galão de água sendo vendido por R$ 150 e um colchão por R$ 450. A primeira refeição é apenas um café e um pão seco”, detalhou.
De acordo com as peritas, penitenciárias de segurança média e máxima devem abrigar até 800 pessoas e, por isso, elas recomendaram o desmembramento da unidade, para que os profissionais possam trabalhar adequadamente e os privados de liberdade tenham uma condição mais digna.
Já no caso do Adauto Botelho, a inspeção detectou que a limpeza e a higiene são precárias, e falta capacitação para a equipe de saúde.
“A pessoa com transtorno mental tem que ter um acompanhamento de acordo com o seu caso, a sua necessidade. Tem ala que não tem psiquiatra, falta equipe de desinstitucionalização. A equipe de enfermagem é despreparada”, descreveram.
Quanto às residências terapêuticas, as peritas mencionaram que foram escolhidas duas unidades em função de denúncias e que ambas não têm habilitação do Ministério da Saúde para funcionar.
“Não tem plano terapêutico, as pessoas estão literalmente largadas. A ociosidade é muito grande. Há vasos entupidos, chuveiros queimados, enfermagem sem evolução há mais de um ano, prontuários incompletos e desatualizados”, contou Maria Cecília.
Os locais, segundo as inspetoras, não estão em conformidade com a Portaria 106/2000, do Ministério da Saúde, que estabeleceu os serviços residenciais terapêuticos em saúde mental, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
“A situação dos pacientes não se deve à omissão, mas à sobrecarga dos profissionais. Observamos um aparente acúmulo de funções, tanto dos técnicos de enfermagem quanto dos cuidados. Essa precarização do profissional vai reverberar na qualidade do tratamento”, explicaram.
No tocante aos centros de atendimento socioeducativo, a principal constatação é de que os locais têm estrutura semelhante a uma unidade prisional.
“Não só com relação à estrutura, mas com relação à dinâmica do dia a dia, é a militarização do sistema socioeducativo. Vamos recomendar fortemente que haja uma mudança nessa abordagem, que deve ser prevalentemente pedagógica e menos militarizada”, sustentou Camila.
Para a equipe de inspeção, os alojamentos mais parecem celas do que quartos, e os adolescentes são submetidos a revistas vexatórias, nas quais precisam se despir.
Logo após o término da apresentação, membros de instituições públicas que atuam no sistema prisional, como a Secretaria de Estado de Segurança Pública, o Ministério Público Estadual, e o Tribunal de Justiça, assim como representantes da sociedade civil, discutiram os apontamentos das inspeções e debateram melhorias que podem e devem ser implementadas para aprimorar a condição das pessoas privadas de liberdade em Mato Grosso.
“Temos evoluído em temos de diálogo com o sistema prisional. A participação da Defensoria Pública e organizações não governamentais (ONGs) é fundamental. Há quatro anos, quando começamos essas inspeções, os problemas eram muito mais graves. Chegamos em unidades prisionais em que o juiz não ia há dois anos. Os lugares em que não iam juízes e defensores eram os que mais tinham tortura e violência”, pontuou o juiz Marcos Faleiros.
O magistrado ainda citou que tem restrições quanto à eficácia das chamadas comunidades terapêuticas, que não foram inspecionadas desta vez (mas podem ser futuramente) pelo MNPCT.
“Nós participamos, acompanhamos as inspeções, auxiliamos na coleta dos dados. Após o encaminhamento desse relatório, que será enviado a todas as autoridades, vamos verificar quais serão as medidas tomadas”, ressaltou o defensor Paulo Marquezini.
Por fim, as peritas solicitaram apoio para a aprovação do projeto de criação do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, cuja minuta já está pronta e que deve ser apreciado pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT).
De acordo com a equipe, há apenas 11 peritos para realizar inspeções no Brasil todo. A última vez que o Mecanismo esteve em Mato Grosso foi em 2017.